Histórias de coragem marcaram a vida de magistrados e servidores aposentados do Poder Judiciário

Mais que o ato de encerrar uma fase importante da vida, a aposentadoria deveria ser para todo trabalhador um momento de reconhecimento por uma vida dedicada ao atendimento de todos. Para o Poder Judiciário de Mato Grosso é exatamente esse o sentimento que move as homenagens pelo ‘Dia Nacional do Aposentado’, comemorado nesta quarta-feira (24 de janeiro).
 
Para a presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, desembargadora Clarice Claudino da Silva, o respeito por aqueles que nos antecederam e pavimentaram os caminhos que hoje percorremos deve ser constante.
 
‘É impossível pensarmos ou falarmos em avanço sem conhecer e reconhecer o papel daqueles que trilharam esses caminhos antes de nós. Foram eles e elas, homens e mulheres, magistrados e magistradas, servidores e servidoras, que antes de nós tiveram o árduo desafio de romper barreiras, até mesmo muitas daquelas enfrentadas ainda hoje por nós. Na estrada da vida temos sempre duas opções: avançar ou recuar! Estou certa de que para aqueles que estiveram aqui antes de nós, recuar não era uma opção. E nesta homenagem singela honramos e agradecemos a todos os aposentados e aposentadas do Poder Judiciário de Mato Grosso. Nosso muito obrigada!”, assinalou a presidente Clarice Claudino.
 
Referência na educação judicial, o desembargador aposentado Mauro José Pereira, de 89 anos, é natural de Cuiabá, e dono de um currículo bastante vasto de trabalho prestado à sociedade mato-grossense e ao Brasil. Formado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, foi nomeado Juiz de Direito em 1967, quando iniciou sua carreira na Comarca de Guiratinga, tendo atuado também nas comarcas de Rondonópolis e Cuiabá, onde permaneceu até sua ascensão ao desembargo no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, em 18 de dezembro de 1973.
 
Mauro José Pereira foi presidente do Poder Judiciário de Mato Grosso no biênio de 1977 a 1979, presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) entre os anos de 1976 e 1978, e também presidiu a Associação Mato-grossense dos Magistrados (AMAM).
 
Professor e diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o desembargador fez de sua carreira um modelo dedicado à formação e ao aprimoramento profissional de magistrados, dividindo seus dias entre o exercício do magistério e da magistratura, suas duas paixões. Entre seus alunos, os desembargadores Helena Maria Bezerra Ramos, Márcio Vidal e a própria desembargadora-presidente Clarice Claudino.
 
“A busca incessante do conhecimento é fundamental para qualquer profissão, em especial para aqueles que exercem a nobre função de julgar. A magnitude do exercício do magistrado exige dele a permanente busca pelo saber, e enquanto estiver nesse ofício magno, ele tem que justificar sua função”, Mauro José Pereira.
 
Em 2008 foi agraciado com o título de ‘Professor Emérito da Universidade Federal de Mato Grosso’, em reconhecimento a notável trajetória de dedicação ao conhecimento. Em 2009, a Escola Superior da Magistratura do Estado de Mato Grosso (Esmagis-MT) instituiu a ‘Medalha do Mérito Acadêmico Desembargador Mauro José Pereira’, também em reconhecimento às relevantes contribuições prestadas ao estudo, ao ensino do Direito e da jurisdição, perpetuando assim sua memória e labor dedicados ao engrandecimento do Judiciário Mato-grossense. O Fórum da Comarca de Campo Novo do Parecis também leva seu nome.
 
Chacina do Paralelo 11 – O encontro desastroso entre seringueiros e pistoleiros em busca de ouro e borracha, e um grupo de indígenas da etnia Cinta-Larga marcaria a carreira jurídica do então juiz Mauro José Pereira. O extermínio ocorrido em 1963, na localidade de Juína-Mirim, às margens do Rio Aripuanã, ao norte de Mato Grosso, atingiu repercussão internacional pela brutalidade empregada na execução dos indígenas, mortos sem condição de defesa, a tiros de mosquetão e metralhadora, e tendo seus corpos jogados no Rio Aripuanã. O massacre prosseguiu com a caçada dos indígenas que fugiram do local de extermínio, que acabaram sendo encontrados e assassinados a golpes de facão, servindo como recado para os demais. O genocídio ficou conhecido como a “chacina do paralelo 11”.
 
Dez anos após o fato, o processo já acumulava mais de mil páginas. Dos quatro juízes mato-grossenses designados para o caso, três deles haviam morrido em circunstâncias misteriosas. Em 27 de maio de 1973, o Jornal O Estado de São Paulo noticiou a matéria “Sentença sobre chacina de índios sai após 10 anos”, destacando que o caso havia sido assumido pelo juiz Mauro José, com a missão de sentenciar e dar fim ao imbróglio.
 
Trecho da matéria: “Dos juízes mato-grossenses é o mais jovem, porém é tido como um dos mais severos e brilhantes, tanto que suas sentenças, geralmente longas, com mais de 10 laudas, jamais foram reformadas”. Taxativo, Mauro José afirmou à reportagem: “Não conheço o processo em profundidade. Vou vê-lo com toda a atenção, não deixando de esmiuçar nada. A verdade há de surgir, doa a quem doer”.
 
Mauro José Pereira se aposentou em 1994. Com a humildade de quem dedicou 26 anos, nove meses e dezesseis dias de efetivo exercício da magistratura, ele aconselha aos novos juízes: “O juiz deve ter o fascínio de, no exercício de seu ofício, lutar sempre pela afirmação do Direito, sem descurar da essencial busca do aprimoramento jurídico, com uma visão ética e social”.
 
Natural de São José do Campestre, no Rio Grande do Norte, o juiz aposentado José Arimatéa Neves Costa, de 59 anos, chegou a Mato Grosso em 26 de fevereiro de 1999, quando tomou posse no cargo de Juiz Substituto. Muito antes disso, aos 18 anos, ingressou na Petrobrás por meio de concurso público, permanecendo por 10 anos na área petrolífera. Com o trabalho em regime semi-interno, onde a cada sete dias trabalhados eram garantidos sete dias de folga, José Arimatéa conseguiu conciliar o curso de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, com o trabalho na petrolífera. A condição dos professores era que durante os sete dias presentes, frequentasse todas as aulas matutinas e noturnas, como forma de compensar os dias faltados.
 
Em 1993 foi aprovado nos concursos para juiz estadual e delegado federal no Estado de Rondônia. Em 1994 tomou posse no Judiciário Rondoniense, onde permaneceu como juiz por cinco anos. Por influência de amigos que haviam assumido a magistratura em Mato Grosso e por opinião de sua esposa, decidiu prestar concurso para o Judiciário Mato-grossense, sendo aprovado e tomando posse em fevereiro de 1999. Designado para posse na Comarca de Juína, Arimatéa também atuou nas Comarcas de Barra do Bugres, Sinop, Rondonópolis e Cuiabá.
 
Em 1994, ainda na Comarca de Cacoal/RO, o juiz José Arimatéa viveria um dos momentos mais tensos de sua carreira. O caso envolvendo o nascimento de uma bebê indígena da etnia Cinta-Larga, condenada à morte pela prática da eugenia pela sua tribo (tradição seguida por pelo menos 13 etnias brasileiras, onde crianças com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou fruto de adultério podem ser vistos como amaldiçoados, e dependendo da etnia, acabam envenenados, enterrados ou abandonadas na mata). Decepcionados com o sexo do bebê, os pais jogaram a criança na fossa séptica da Funasa, sendo resgatada por uma enfermeira do órgão. Na tentativa de recuperar a criança, os indígenas cercaram a sede do Fórum de Cacoal na intenção de matar a bebê. Graças a atitude enérgica do magistrado foi possível garantir a vida da criança, que acabou adotada pela enfermeira heroína.
 
Aposentando em março de 2020, após 21 anos e 10 dias de contribuição com a magistratura mato-grossense, José Arimatéa hoje atua de forma seletiva como advogado, caminho inverso ao início de sua carreira. Como orientação aos novos magistrados, Arimatéa reforça: “Mantenham o compromisso consigo mesmo e com a magistratura. Sejam operários do Direito. A sociedade não quer sentenças belas ou eruditas, nem peças dignas de tratados jurídicos, o anseio social é por decisões rápidas, objetivas e inteligíveis até para os mais leigos. Compromisso é algo que devemos ter com tudo o que fazemos e com todos que acreditam em nós, e isso não pode ser diferente na magistratura”.
 
Pai de seis filhos e de origem muito humilde, e não menos sábio, o servidor Zeno Viegas Pinho, de 77 anos, dedicou 35 deles ao efetivo exercício na Comarca de Barra do Bugres. Antes de trabalhar no Poder Judiciário, para garantir o sustento da família, Zeno foi pescador, oleiro, catador de poaia (raiz utilizada como princípio ativo para produção de expectorante, amebicida e anti-inflamatório), ‘saqueiro’ em uma beneficiadora de arroz, garimpeiro na região de Nortelândia e Santo Afonso, e por fim, servente de pedreiro.
 
Aposentado em 2022, o servidor foi um dos homenageados pela ‘Aposentadoria Humanizada’, evento realizado em novembro de 2023 pelo Poder Judiciário em homenagem ao Dia do Servidor (28 de outubro), e criado com a missão de reconhecer e valorizar a vida dedicada por servidores e servidoras em prol da Justiça no Brasil.
 
“Eu não sabia nem o que era um juiz, quando o ex-prefeito de Barra do Bugres mandou eu vestir uma camisa e calçar um sapato para falar com o juiz. O juiz perguntou o que eu sabia fazer, respondi que sabia consertar as “coisas” e ele [juiz] me contratou para trabalhar na manutenção. Lá fui ficando de juiz em juiz, e se passaram 35 anos”.
 
Sobre o orgulho em trabalhar no Poder Judiciário, ele respondeu: “Nunca trabalhei com salário fixo. Pescava para vender o peixe e trazer dinheiro para dentro de casa. Só depois que entrei para o Judiciário que tive sossego. A gente não tinha casa para morar, e se hoje tenho casa própria e condição para viver bem com a minha família, foi graças ao trabalho no Judiciário. Ninguém nunca fez uma festa para mim [Aposentadoria Humanizada], fiquei emocionado quando Cuiabá me ligou falando da festa”, concluiu.
 
Maria Lúcia Aguiar, 61 anos, natural de Rondonópolis/MT, exerceu uma carreira bastante produtiva e desafiadora dentro do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Ao longo de seus 32 anos de trabalho, Maria Lúcia foi vice-diretora-geral do TJ, diretora do Departamento Gráfico, exercendo em diversos momentos funções de liderança à frente de setores estratégicos para a administração. Foi responsável por idealizar e participar da implantação de projetos como a Justiça Comunitária; o Programa Bem-Viver; o desafio da implantação do projeto-piloto para terceirização dos serviços internos, estendido mais tarde para as comarcas; a implantação do credenciamento de profissionais; a implantação da ‘Laborterapia’ com a proposta de aproveitar a mão-de-obra carcerária feminina na produção de envelopes pardos para atender o Tribunal de Justiça e as comarcas.
 
Em 2011, com a criação da ‘Aposentadoria Humanizada’, Maria Lúcia foi desafiada a criar uma proposta que fosse capaz de demonstrar o reconhecimento do Poder Judiciário àqueles que encerravam uma importante fase da vida e que ao mesmo tempo reverenciasse toda uma história de serviços prestados à Justiça brasileira.
 
Aposentada em 2018, Maria Lúcia se recorda do período difícil enfrentado a partir de 2020 com a chegada pandemia, ocorrido logo após sua aposentadoria em 2018.
 
“Atravessamos um período longo de luto, isolamento, reflexão e muito medo. Como sempre fui muito criativa, comecei a pensar como poderia empreender. Busquei orientação do Sebrae, aproveitei o curso técnico de gastronomia que fiz enquanto ainda estava no tribunal e decidi colocar em prática. Comecei produzindo massas artesanais para meus amigos e vizinhos, e aquilo que começou como um hobby se tornou motivo de alegria e de muita satisfação pessoal. Registrei minha marca própria de massas caseiras, e mesmo com a conquista na vida de empreendedora, me recordo com imensa saudade do trabalho no tribunal. Foram anos inesquecíveis”, refletiu Maria Lúcia, que contou sua história com o intuito de motivar outros servidores ao empreendedorismo.
 
Naiara Martins /Fotos: Arquivo Pessoal
Coordenadoria de Comunicação da Presidência do TJMT

Fonte: Tribunal de Justiça de MT – MT

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