Almanaque — Dona Domingas, pra começarmos, conte pra gente de onde a senhora vem e como tudo começou.
Dona Domingas — Eu sou nascida e criada aqui mesmo, em São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá, lá pros lado do rio. Nasci em 1954. Desde minina, com uns oito anos, eu já tava no meio das festança, vendo o povo dançá Siriri, batê palma, rodá a saia. Aquilo me encantô. A gente aprendia era vendo, não tinha negócio de escolinha, não. O corpo é quem aprendia primeiro.
Almanaque — E além de dançar, a senhora também rompeu um certo tabu nas festas, não foi?
Dona Domingas — Foi mesmo, fio. Naquele tempo, tamborim era só pros homi. Mulher nem podia chegá perto, senão diziam que dava azar. Mas eu fui lá e peguei. Fui a primeira mulher a tocá tamborim nessas festas do povo. O povo arregalô o zóio, mas depois acostumô. O que eu queria mesmo era mostrâ que nós, mulher, também pode. E pode é muito!
Almanaque — E dessa paixão nasceu o grupo Flor Ribeirinha?
Dona Domingas — Foi. Criei com o coração, viu? O Flor Ribeirinha é pra mostrá nossas danças, nossas rezas, nosso jeito de sê. O siriri, o rasqueado, o boi-à-serra… isso tudo é coisa nossa, de raiz. Nós não dança só por dançá, não. Nós conta história no passinho, no canto, na batida da viola de cocho. Quando a saia roda, parece que o mundo até muda de cor.
Almanaque — E com as mãos, a senhora também conta histórias, né?
Dona Domingas — Ah, mexê com barro é coisa que tá no sangue. Aprendi com minha mãe, que era índia coxiponé, uma mulher sabida demais. Ela me ensinô a tirá o barro da beira do rio, a deixá no ponto, a moldá com jeito. Hoje eu passo isso pra frente. Lá nos CAPS, eu ensino o povo a mexê no barro, e eles vão se acalmando, conversando, se curando. É uma terapia, uma bênção.
Almanaque — A senhora sempre esteve muito envolvida com a comunidade.
Dona Domingas — Sempre tive no meio, fio. Já fui da associação de moradores, da associação das mãe, da ceramista… A gente tem que se juntá, porque sozinho ninguém vai longe. Em comunidade a gente se ajuda, divide a farinha, reparte o peixe e segura a barra.
Almanaque — E esse trabalho todo foi reconhecido. A senhora já recebeu prêmios importantes.
Dona Domingas — Ganhei sim. Em 2018, levei o prêmio Culturas Populares do Ministério da Cultura. Fiquei toda boba, sô! Segunda maior nota do Centro-Oeste. Em 2019, a UFMT me deu o título de Doutora Honoris Causa. Eu falei: “Credo, gente, eu nem terminei os estudo!” E eles: “Mas a senhora tem o saber do povo.” Aí eu chorei, né? Porque é bom demais sê reconhecida pelo que a gente faz com amor.
Almanaque — E em 2023, o grupo Flor Ribeirinha brilhou no mundo!
Dona Domingas — Vixe Maria! Foi um sonho! A gente foi pra Coreia do Sul, representando o Brasil no Cheonan World Dance Festival. Chegando lá, os coreano ficava tudo besta com as roupa, com a dança, com o batuque. E nós ganhemos! Trouxemos o prêmio pra casa. O povo de São Gonçalo chorô, festejou, batêu palma. Era nossa cultura sendo aplaudida do outro lado do mundo. Ô trem bão!
Almanaque — Dona Domingas, pra fechar, o que a senhora diria pra quem quer seguir o caminho da cultura popular?
Dona Domingas — Eu digo assim, ó: não tenha vergonha das sua raiz. Dance com gosto, com respeito. Escute os mais velho, porque eles são livro vivo. E num se esquece: cultura não é coisa véia, é coisa viva. É igual barro: se não mexê, seca; mas se cuidá, vira arte.