Nos tempos em que o bairro Quilombo ainda preservava suas raízes e características originais, existia, num canto mais afastado, um velho muro com uma parte arrombada. O matagal crescia desordenado, escondendo os restos das antigas taipas socadas, que guardavam histórias esquecidas pelo tempo.
Durante o período das chuvas, as águas corriam fartas naquela zona. Mas nas épocas de seca, lavadeiras e engomadeiras precisavam caminhar longas distâncias até o Ribeirão, passando por locais como o tanque do Baú ou os logradouros do Pito Aceso. O regresso, sempre carregadas com trouxas de roupa, obrigava-as a atravessar o tal muro arrombado, já no cair da noite.
Uma dessas mulheres era Siá Joaninha, lavadeira de mãos calejadas e fé inabalável. Sempre ouvia da sua patroa, Sinhá Dona:
— “Qualquer dia, essa tua mania de trazer roupa à noitinha vai-te pregar um susto dos grandes!”
Mas Joaninha ria, firme:
— “Com o rosário de Nossa Senhora e o meu cachorro Ventania, não temo alma viva nem morta!”
Costumava voltar para casa por volta das oito da noite — uma hora tardia, nos tempos antigos. Foi numa dessas noites que, ao cruzar o caminho poeirento e silencioso, o vento lhe trouxe sons estranhos: cochichos abafados, ladainhas arrastadas, como preces malditas ditas por vozes sem rosto.
Ela apressou o passo, apertando o rosário entre os dedos, mas os murmúrios apenas aumentavam. Era como se caminhasse de encontro ao mistério.
Numa curva do trilho, deu-se o inesperado: um cortejo fúnebre. Todos vestidos de negro, cabeças baixas, passos sincronizados numa marcha fúnebre, em redor de um caixão igualmente negro. O silêncio era cortado apenas pela toada sinistra das vozes. O grupo caminhava lentamente… em direção ao muro arrombado, por onde entraram, um a um, desaparecendo na escuridão do mato.
As pernas de Siá Joaninha fraquejaram. Agarrou-se ao rosário e, com o coração aos pulos, correu como nunca, com Ventania a ladrar assustado ao seu lado.
Desde então, diz-se que o muro arrombado não é apenas um atalho, mas um portal. Um lugar onde, em noites caladas, o mundo dos vivos e o dos mortos se cruzam — e nem todos têm a sorte de voltar para contar.