Rasqueado Cuiabano: exaltação à vida

Os paraguaios remanescentes da guerra começaram a se integrar junto com os ribeirinhos mato-grossenses para o convívio do dia-a-dia. Nessa interação de simbioses práticas, a viola-de-cocho e o violão paraguaio começaram a tocar uma nova música, mistura de siriri mato-grossense e polca paraguaia. O novo ritmo surgiu para a exaltação da volta à vida e para sepultar as lágrimas do grande conflito que determinou o rumo da história latino-americana. A fusão dessas duas danças resultou numa terceira: o pré-franqueado.

O pré-franqueado limitou-se aos acordes de siriri/cururu, devido ao seu desenvolvimento na viola-de-cocho, nos chamados Tchinfrins (bailes de quiçaça), onde as formas de dançar receberam diversas designações como: liso, crespo, rebuça-e-tchuça… para mais tarde participar das festas juninas, carnaval ou qualquer exaltação festeira dos ribeirinhos. O rasqueado é formado por três ritmos que estão na base da formação do povo brasileiro, ou seja, o negro, o índio e o europeu: Lundu – canto e dança populares no Brasil durante o século XVIII, introduzidos, provavelmente, pelos escravos de Angola […] o cateretê – dança de origem ameríndia. O Padre José de Anchieta aproveitou-se de uma dança religiosa dos índios, chamada cateretê, para atraí-los ao cristianismo […] habanera – ritmo antiquíssimo hispano-árabe (séc. X) conforme Zuleika Arruda, em seu livro “O que é rasqueado cuiabano”.

Os instrumentos utilizados na execução do tradicional rasqueado são o ganzá, o mocho ou adufo (espécie de tambor em forma de banquinho), o violino fone e a imprescindível viola-de-cocho. Arruda observa que novos instrumentos, principalmente os eletrônicos, são empregados por bandas ditas da região urbana.

O rasqueado e outras manifestações culturais típicas do Mato Grosso passaram por uma crise cultural devido ao fluxo migratório ocorrido a partir da divisão do Estado em 11 de outubro de 1977. A divisão levou os políticos de então a se preocuparem mais com o problema agrário e o crescimento econômico frente à política nacional. Nesse contexto, o fator artístico-cultural ficou em segundo plano, sendo criada somente em 1991 uma Política Estadual de Incentivo à Cultura e a criação da Secretaria de Estado de Cultura, em 1995.

Esse processo fez com que grupos locais, preocupados com a possível perda de sua cultura, passassem a constituir diversas ações com o objetivo de fortalecer, preservar e difundir a cultura local em torno do rasqueado. Segundo Arruda (2007), os movimentos são o Grupo Sarã, os trabalhos de Vera-Zuleika, o Evento “Encantação Mato Grosso”, a Caravana do Rasqueado e Confraria do Rasqueado. Esses movimentos abrigam tanto a “velha guarda e a nova geração do rasqueado”.
Junto a esses eventos, as composições das letras se mostram como importante instrumento de divulgação de diversas práticas sociais locais. Nesse sentido, o rasqueado se constitui em um arquivo da memória cultural mato-grossense.

A partir da década de 1990, o rasqueado cuiabano tomou novo impulso. O poeta Moisés Martins, junto com cantor e compositor Pescuma, cria a música Pixé, que se tornou hino das noites cuiabanas. Eventos começaram a surgir aglomerando mais de dez mil pessoas. O começo desta fase nova do rasqueado cuiabano deu-se a partir do evento chamado Encantação Mato Grosso I, II, III e IV, liderado pelas cantoras e compositoras Vera & Zuleica, tendo sido uma das apoteoses nos ginásios de esportes da Universidade Federal de Mato Grosso e no Colégio São Gonçalo. O exemplo logo foi seguido pela Cervejaria Cuiabana com o projeto Rasqueart I e II, na Avenida Mato Grosso, assim como A Grande Noite do Rasqueado Cuiabano (gravado ao vivo) na praça de eventos do bairro Morada da Serra, em 1998.

No começo de 1993, o cantor, compositor e pesquisador Milton Pereira de Pinho, o Guapo, criou o projeto Rua do Rasqueado, objetivando o resgate da música das bandas de rasqueado que tocavam na periferia da capital e, também, na baixada cuiabana. O projeto teve bom respaldo e os velhos “mestres” e compositores foram interpretados por novos nomes da música mato-grossense. Dentre essas bandas surgiu a “Ventrecha de Pacu”, liderada pelo cantor e compositor Pescuma e, também, pelo saxofonista João Batista de Jesus (Bolinha), filho do “Mestre Albertino” um ícone do rasqueado cuiabano. Outra banda que se destacou foi a Viola-de-Cocho, liderada pelo cantor Roberto Lucialdo.

Nas composições do rasqueado, nas letras estão sobrepostas diversas práticas sociais mato-grossenses e cuiabanas, como a culinária, linguajar, festejos e danças. A música “Pixé”, por exemplo, é praticamente a receita do doce “em pó” (tipo paçoca) servido em canudinhos de papel, tão apreciados pelos cuiabanos. A música expressa o fator tradição na formação indenitária mato-grossense, ao recuperar na memória as brincadeiras de criança e os fogos de artifício, além de manifestar o desejo da continuidade da prática de comer o doce em “um dia ainda verei, eu tenho fé, meu neto com a boca toda suja de pixé”. Outro fator importante a ser observado na culinária do Estado está relacionado à pescaria e, como resultado, o peixe mais saboreado na região é o pacu, que dentre outros preparos, a preferência é pelo pacu assado, acompanhado de arroz sem sal, pirão e farofa de banana. Há também o pequi, fruto do cerrado muito utilizado para preparar alimentos, sobretudo com o arroz; é aproveitado para se fazer licor de pequi, bebida muito apreciada no Mato Grosso.

O rasqueado continuou a fomentar a alegria e ensejou estar cada vez mais vivo. Dos expoentes do Rasqueado destacam-se: Tote Garcia (o precursor), já falecido, Guapo, Zuleica Arruda & Vera Bagetti, Benedito Donizete de Moraes (Pescuma), Henrique e Claudinho, Grupo Cinco Morenos, Roberto Lucialdo, Bolinha, Moisés Martins, João Eloy, Hamilton Lobo, João Manoel, Juca de Mestre, Gilmar Fonseca, Damasco, e ainda as bandas Pixé, Flôr de Camalote, Cuiabá-Cuiabá, Sistema Solar, Viola-de-Cocho e tantas outras.

Destacaram-se grupos musicais voltados ao tema; Banda do Mestre Inácio, Conjunto Serenata, Zulmira Canavarros, Dunga Rodrigues, Nardinho (acordeonista), Benjamim Ribeiro, Conjunto Cinco Morenos. Também fizeram história os compositores Honório Simaringo, José Agnello, Mestre Albertino, Vicente dos Santos, Tote Garcia, Luíz Cândido, Luíz Duarte, Mestre Luíz Marinho, Zelito Bicudo, Odare Vaz Curvo, Nilson Constantino, Namy Ourives, Dante Miráglia, José Rabelo Leite, Gigo, Chilo e tantos outros. A dupla Henrique & Claudinho gravou ainda, em “vinil”, músicas dos compositores Roberto Lucialdo e Vera & Zuleica. Tal trabalho, denominado Cuiabá/Cuiabá, foi sucesso total e seguido de outros.

Almanaque

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O Almanaque Cuyabá é um verdadeiro armazém da memória cuiabana, capaz de promover uma viagem pela história em temas como música, artes, literatura, dramaturgia, fatos inusitados e curiosidades de Mato Grosso. Marcam presença as personalidades que moldaram a cara da cultura local.