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Candimba – O filho que se deformou pela maldade

Na Cuiabá dos anos 1930, entre ruas de terra batida e casas com janelas de madeira abertas para o calor, havia um rapaz conhecido por todos: Candimba. Era bonito, charmoso, e encantava as jovens com seu sorriso e sua fala envolvente. Mas, por trás da aparência e da popularidade, escondia-se um temperamento sombrio. Candimba era notoriamente nervoso, principalmente com sua mãe — uma senhora já idosa, humilde e dedicada, que fazia de tudo pelo filho. Com o tempo, os cochichos aumentaram: diziam que ele a tratava mal, que gritava, empurrava… até que os maus-tratos tornaram-se mais cruéis. Pontapés, insultos, humilhações. A mãe, paciente e resignada, suportava em silêncio. Foi então que, como num castigo vindo do próprio céu ou da terra, o corpo de Candimba começou a mudar. Primeiro, um leve encurvamento nas costas. Depois, suas pernas tornaram-se finas e fracas, mal sustentando o peso do corpo. A cada novo ato de crueldade, sua figura humana ia se desfazendo. A corcunda crescia. A pele tornava-se pálida e ressequida, os olhos fundos e sombrios, como de alguém que já não via o mundo com clareza. Os cabelos, embolados e sujos, lembravam cabelos de milho seco, e as unhas, longas e negras, pareciam garras de uma criatura esquecida pelo tempo. Dizia-se que ele já mal comia, e que o único prazer que ainda restava era estar ao lado da mãe, a mesma que tanto maltratara. Uma relação estranha, de culpa, dor e silêncio. Com o tempo, o rapaz passou a viver quase recluso. Não falava com ninguém, não saía de casa — exceto quando seu único amigo, um homem de coração bondoso, o levava até a frente da casa para tomar um pouco de sol. Quem passava e via Candimba naquele estado, franzia o cenho e fazia o sinal da cruz. “Aquilo não é mais gente”, diziam. “É o castigo de Deus, por levantar a mão contra quem lhe deu a vida.” E assim, Candimba tornou-se mais que um homem deformado: tornou-se lenda. Uma lembrança viva, contada entre gerações da Baixada Cuiabana, de que nenhum sucesso no mundo justifica a falta de amor e respeito por uma mãe.

A princesa branca do vestido azul

Num tempo antigo, quando a vila de Livramento ainda era cercada por vastas matas virgens e bosques densos, a vida corria tranquila entre os campos e os ribeirões. Grandes propriedades se espalhavam pela paisagem, testemunhas do poder dos velhos posseiros, e as crianças brincavam livres entre flores, pássaros e borboletas. Foi num desses dias, de céu limpo e ar doce, que um menino de apenas quatro anos, encantado pelo colorido das asas das borboletas e pelo canto das aves, seguiu mata adentro. Fascinado, foi se afastando de casa sem perceber, perdido no esplendor da natureza. Horas se passaram. O sol já se inclinava no céu quando o menino deu-se conta de que não sabia mais voltar. O medo apertou-lhe o peito. Sentiu fome, sede, e as lágrimas brotaram nos olhos. Sentou-se à beira de um riacho e começou a chamar pela mãe, com a voz embargada pelo desespero. Foi então que ela apareceu. De entre a mata, surgiu uma jovem de beleza serena, vestida com um lindo vestido azul, o rosto envolto numa luz suave, acolhedora. Sem dizer palavra, ela ajoelhou-se diante da criança, segurou-lhe a mão com ternura e sorriu. — “Vem, meu anjinho. Vamos para casa.” O menino seguiu a moça, sentindo-se seguro como se estivesse nos braços da própria mãe. Ao chegarem à entrada do povoado, ela ajoelhou-se, olhou-o nos olhos e disse com voz doce: — “Se alguém lhe perguntar quem o trouxe, diga apenas que foi a melhor amiga de todas as mães… a Princesa Branca do Vestido Azul.” Ao vê-lo regressar ao lar, a vila inteira celebrou. Os pais, que o procuravam há horas pelas matas e ribeirões, já sem esperança, choraram de alívio e gratidão. Em sinal de fé e agradecimento, mandaram celebrar uma missa na capela da vila. Na manhã seguinte, a igreja estava cheia de flores, luzes e fé. O menino, de mãos dadas com os pais, caminhava pelo corredor central quando apontou, com o rosto iluminado pela alegria: — “Olha, mãe! Ali está a moça que me trouxe pra casa! Com o mesmo vestido azul!” No altar, adornada de flores, estava a imagem de Nossa Senhora do Livramento — a mesma que o guiara pela mão quando a esperança parecia perdida. Desde então, na vila de Livramento, muitos acreditam que a Santa protege as crianças e guia os que se perdem — não apenas na floresta, mas também na vida.

A Mão Negra – O Espírito das Águas do Cuiabá

Nas margens do Rio Cuiabá, entre barrancos altos e vegetação espessa, corre uma lenda temida por pescadores e ribeirinhos da Baixada Cuiabana: a da Mão Negra, uma criatura misteriosa que ronda os que se atrevem a pescar em dias santos. Conta-se que, sob um grande barranco, morava outrora uma idosa muito doente e reclusa. Solitária e miserável, era vista por alguns como uma bruxa — e por outros, como uma alma atormentada. Incapaz de pescar por conta própria, dizem que ela roubava os peixes dos cestos alheios, sempre à noite, quando ninguém via. Mas o mais assustador é o que os antigos juram: quando saía para roubar, ela se transformava numa enorme mão negra, de dedos longos e pegajosos, que emergia das águas como se tivesse vontade própria. Nas manhãs seguintes, os pescadores mais distraídos encontravam suas cestas vazias — e um estranho rastro úmido, como se algo tivesse arrastado os peixes para dentro do rio. Um certo feriado, um jovem pescador, confiante e debochado, decidiu que era hora de provar que tudo aquilo era lorota. Ria das histórias dos mais velhos e dizia que não se deixaria intimidar por “assombração de velha”. Armou seu equipamento e, ainda ao amanhecer, subiu o barranco com a intenção de passar o dia e a noite pescando. Logo cedo, os peixes começaram a fisgar. De todos os tamanhos, enchiam sua cesta a olhos vistos. Ao meio-dia, satisfeito, decidiu fazer uma pausa para almoçar. Antes, porém, quis conferir sua colheita — e ali, no fundo do cesto, não havia mais peixe algum. Desconcertado, virou-se para juntar suas coisas e partir. Foi então que a viu: uma imensa mão negra, viscosa e de aspecto monstruoso, surgindo das águas barrentas, tateando à beira do rio como se procurasse algo — ou alguém. O rapaz ficou paralisado. Em pânico, tentou fugir, mas tropeçou num emaranhado de cipós e caiu, preso e aos gritos. Só não foi levado porque outro pescador, que passava mais adiante, ouviu os gritos e correu em seu socorro. De volta à cidade, o jovem mal conseguia falar. Estava pálido, trêmulo, e repetia sem parar:— “Ela existe… a mão negra… ela pegou meus peixes… ela ia me levar…” Desde então, poucos se atrevem a pescar naquele barranco, especialmente em dias santos. Pois dizem que, quando a fome do espírito é grande, a Mão Negra volta a emergir, em busca de quem desrespeita a tranquilidade das águas sagradas.

A Alavanca de Ouro – A Ganância Enterrada na Colina do Rosário

Na antiga Colina do Rosário, nas imediações da igreja que hoje ali se ergue, conta-se que, certo dia, algo extraordinário surgiu: uma alavanca de ouro aflorou do solo, brilhando sob o sol como uma promessa de riqueza infinita. A notícia espalhou-se rapidamente e a cobiça instalou-se no coração dos moradores. Entre todos, o mais determinado a possuir o objeto era um rico português, homem de posses e ambição desmedida. Sem hesitar, reuniu os seus numerosos trabalhadores e ordenou que iniciassem uma escavação profunda, guiada por sua obsessão. Queria a alavanca a todo custo — e que se abrisse a terra, se fosse preciso. Homens cavavam sem descanso, sob o sol escaldante e a chuva insistente. Dia e noite, empunhavam ferramentas, alimentados apenas pela esperança do ouro. A ganância tomou conta do lugar: os rostos endureceram, as conversas cessaram, e até entre os trabalhadores a harmonia desapareceu. Discussões e empurrões substituíram a camaradagem. Foi então que, numa tarde abafada, um velho muito magro e exausto apareceu junto ao buraco. Seu corpo curvado e os olhos suplicantes revelavam cansaço e sede. Aproximou-se com dificuldade e pediu humildemente um pouco de água. Mas ninguém o atendeu. Estavam cegos pela ganância, surdos ao pedido. Apenas um trabalhador — o mais simples e silencioso entre eles — sentiu o coração pesar e largou a pá. Subiu da escavação e ofereceu ao ancião um pouco d’água. O velho bebeu com lentidão, como quem saboreia um gesto esquecido. Depois, olhou nos olhos do rapaz e disse: — “Meu filho, trabalha com satisfação, e teu fardo se tornará mais leve. Nem tudo o que brilha é bênção.” Logo depois, o chão tremeu. O céu pareceu escurecer por instantes. A terra ao redor do buraco desmoronou repentinamente, engolindo todos os que ali estavam — exceto o jovem que oferecera água ao velho. Quando os moradores correram ao local, encontraram-no em choque, olhos arregalados, contando o que havia presenciado. Muitos passaram a acreditar que aquele velho não era um homem qualquer — mas o próprio Jesus Cristo, que viera testar os corações. Em honra a esse milagre e ao único gesto de compaixão entre tantos atos de egoísmo, ergueu-se ali, pouco depois, a Igreja do Rosário. E a alavanca de ouro? Nunca mais foi vista. Dizem que foi levada para o fundo da terra, onde a ganância humana não pode mais alcançá-la.

O Pé de Garrafa – O Gigante Solitário da Floresta

Nas profundezas das florestas mais densas e nas encostas das montanhas mais altas do Mato Grosso, há quem jure ouvir gritos longínquos ecoando na madrugada. Gritos tão fortes que, dizem, podem arrebentar os tímpanos de quem ousa escutá-los de perto. Esses gritos não pertencem a nenhum animal comum… são os clamores do temido Pé de Garrafa. Trata-se de uma criatura mística, de presença marcante e aparência singular. É descrito como um ser gigantesco, com mais de três metros de altura, completamente coberto por um pêlo negro espesso, exceto na região do umbigo, onde se encontra uma mancha branca — o seu ponto mais vulnerável. O nome vem do seu único pé, grande e arredondado, com a forma do fundo de uma garrafa, o que lhe dá um caminhar pesado e inconfundível. Para além disso, carrega no rosto apenas um olho — profundo, triste, inquieto — e um único chifre, curvo como galho de árvore seca. Mas o que muitos não sabem é que por trás dessa figura assustadora esconde-se uma alma solitária e antiga. Conta-se que o Pé de Garrafa não nasceu monstro. Em tempos remotos, foi um homem comum, um guardião das matas que desafiou as forças da natureza em busca de poder. Castigado pela própria floresta que jurara proteger, foi transformado num ser marginalizado, preso ao seu território e condenado a vagar eternamente. Hoje, quando encontra alguém nos caminhos escuros da mata, o Pé de Garrafa grita — não para atacar, mas para perguntar o caminho de volta à humanidade, ou talvez para ter uma companhia por instantes. Mas há um aviso antigo: quem ouve os gritos não deve responder, pois ele pode seguir a pessoa por longas distâncias, assombrando os seus passos. A única forma de escapar do seu encalço, dizem os mais antigos, é atingir-lhe o umbigo branco — o ponto fraco que guarda o último vestígio do homem que um dia foi. O Pé de Garrafa é, portanto, mais do que um monstro. É um aviso das matas, um reflexo das escolhas humanas e da solidão que nasce quando nos afastamos da nossa essência.

A Visão – A Dama Branca do Carnaval

Em 1926, pelas calçadas e praças de Cuiabá, não se falava de outra coisa senão da jovem bela e encantadora que iluminava a cidade com sua presença. Conhecida pelo sorriso fácil e pelo espírito alegre, ela era muito estimada pela sociedade cuiabana, especialmente durante os animados bailes de Carnaval. Naquele ano, entregou-se por completo à folia: dançou, cantou e sorriu durante os três dias de festa dedicados ao reinado de Momo. No entanto, mal findaram os festejos, a jovem adoeceu subitamente. Em poucos dias, sua luz apagou-se, deixando a cidade mergulhada em tristeza e espanto. O tempo passou e, como é costume, a memória da moça começou a esvair-se das conversas do quotidiano. Até que, numa certa noite, no bairro do Porto, começaram os primeiros relatos de uma aparição. Alguns foliões diziam ter avistado uma mulher vestida de branco, com feições delicadas e conhecidas. Aproximava-se silenciosa, quase etérea. Quem a via jurava: era a mesma jovem que falecera no Carnaval. O vulto, porém, desaparecia tão misteriosamente quanto surgia. Com o tempo, a lenda ganhou novos contornos. Contava-se que, durante os bailes carnavalescos, a moça voltava em espírito, deslumbrante, dançando entre os vivos. Escolhia um parceiro e, ao fim da noite, levava-o consigo até às imediações do Cemitério da Piedade. Ali, diante do velho portão de ferro, sorria pela última vez, despedia-se… e sumia na penumbra da madrugada, entre as sombras das sepulturas. Desde então, muitos evitam aceitar danças de desconhecidas nos bailes do Porto, especialmente aquelas vestidas de branco. Pois nunca se sabe se se trata de uma foliã comum… ou da Visão que, todos os anos, regressa para um último Carnaval.

Tibarané – O Canto que Antecede a Morte

Entre as veredas e matas densas próximas ao Rio Cuiabá, corre uma lenda temida entre os habitantes do campo: a do Tibarané, um pequeno passarinho encantado, cuja presença anuncia desgraças — e por vezes, a própria morte. Conta-se que, há muito tempo, vivia uma anciã indígena, conhecida por vaguear pelas florestas, perturbando a vida dos que ali moravam. Segundo a tradição, ao amanhecer, ela saía pelos caminhos de terra batida e batia de porta em porta, pedindo um pouco de fumo. Se o pedido era atendido, a velha apenas agradecia com um sorriso silencioso e desaparecia entre as árvores. Mas se alguém recusava ou dizia não ter fumo, o semblante da anciã tornava-se sombrio. Ela virava costas e sumia na mata — mas, à noite, regressava transformada. Na escuridão, um pequeno pássaro pousava sobre a cumeeira da casa de quem a negara. O seu canto era agudo, quase sobrenatural. E segundo os antigos, quando o Tibarané canta, a morte não tarda a bater à porta daquela casa. Nas roças antigas próximas ao Rio Cuiabá, os mais velhos ainda murmuram com respeito e receio: “Quando ouvires o piado do Tibarané, reza… e reza depressa.” Outra versão da lenda fala de um homem — andrajoso, de olhos fundos e fala pausada — que, ao anoitecer, assume a forma da ave encantada. Quem necessitar de ajuda, um favor ou algum bem, deve esperar pelo canto do Tibarané e, com fé, fazer-lhe um pedido, prometendo em troca comida, bebida ou fumo. Se o pedido for aceito, diz-se que, dias depois, um estranho baterá à porta da casa. É o Tibarané, agora em forma humana, vindo cobrar o prometido. Recusar o pagamento é arriscar-se a sofrer as consequências do encantamento. Entre mito e aviso, o Tibarané continua a habitar o imaginário popular — como pássaro, espírito ou sombra, que guarda entre as penas o poder de abençoar ou amaldiçoar.

O muro que leva à escuridão

Nos tempos em que o bairro Quilombo ainda preservava suas raízes e características originais, existia, num canto mais afastado, um velho muro com uma parte arrombada. O matagal crescia desordenado, escondendo os restos das antigas taipas socadas, que guardavam histórias esquecidas pelo tempo. Durante o período das chuvas, as águas corriam fartas naquela zona. Mas nas épocas de seca, lavadeiras e engomadeiras precisavam caminhar longas distâncias até o Ribeirão, passando por locais como o tanque do Baú ou os logradouros do Pito Aceso. O regresso, sempre carregadas com trouxas de roupa, obrigava-as a atravessar o tal muro arrombado, já no cair da noite. Uma dessas mulheres era Siá Joaninha, lavadeira de mãos calejadas e fé inabalável. Sempre ouvia da sua patroa, Sinhá Dona:— “Qualquer dia, essa tua mania de trazer roupa à noitinha vai-te pregar um susto dos grandes!”Mas Joaninha ria, firme:— “Com o rosário de Nossa Senhora e o meu cachorro Ventania, não temo alma viva nem morta!” Costumava voltar para casa por volta das oito da noite — uma hora tardia, nos tempos antigos. Foi numa dessas noites que, ao cruzar o caminho poeirento e silencioso, o vento lhe trouxe sons estranhos: cochichos abafados, ladainhas arrastadas, como preces malditas ditas por vozes sem rosto. Ela apressou o passo, apertando o rosário entre os dedos, mas os murmúrios apenas aumentavam. Era como se caminhasse de encontro ao mistério. Numa curva do trilho, deu-se o inesperado: um cortejo fúnebre. Todos vestidos de negro, cabeças baixas, passos sincronizados numa marcha fúnebre, em redor de um caixão igualmente negro. O silêncio era cortado apenas pela toada sinistra das vozes. O grupo caminhava lentamente… em direção ao muro arrombado, por onde entraram, um a um, desaparecendo na escuridão do mato. As pernas de Siá Joaninha fraquejaram. Agarrou-se ao rosário e, com o coração aos pulos, correu como nunca, com Ventania a ladrar assustado ao seu lado. Desde então, diz-se que o muro arrombado não é apenas um atalho, mas um portal. Um lugar onde, em noites caladas, o mundo dos vivos e o dos mortos se cruzam — e nem todos têm a sorte de voltar para contar.

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