A Alavanca de Ouro – A Ganância Enterrada na Colina do Rosário
Na antiga Colina do Rosário, nas imediações da igreja que hoje ali se ergue, conta-se que, certo dia, algo extraordinário surgiu: uma alavanca de ouro aflorou do solo, brilhando sob o sol como uma promessa de riqueza infinita. A notícia espalhou-se rapidamente e a cobiça instalou-se no coração dos moradores. Entre todos, o mais determinado a possuir o objeto era um rico português, homem de posses e ambição desmedida. Sem hesitar, reuniu os seus numerosos trabalhadores e ordenou que iniciassem uma escavação profunda, guiada por sua obsessão. Queria a alavanca a todo custo — e que se abrisse a terra, se fosse preciso. Homens cavavam sem descanso, sob o sol escaldante e a chuva insistente. Dia e noite, empunhavam ferramentas, alimentados apenas pela esperança do ouro. A ganância tomou conta do lugar: os rostos endureceram, as conversas cessaram, e até entre os trabalhadores a harmonia desapareceu. Discussões e empurrões substituíram a camaradagem. Foi então que, numa tarde abafada, um velho muito magro e exausto apareceu junto ao buraco. Seu corpo curvado e os olhos suplicantes revelavam cansaço e sede. Aproximou-se com dificuldade e pediu humildemente um pouco de água. Mas ninguém o atendeu. Estavam cegos pela ganância, surdos ao pedido. Apenas um trabalhador — o mais simples e silencioso entre eles — sentiu o coração pesar e largou a pá. Subiu da escavação e ofereceu ao ancião um pouco d’água. O velho bebeu com lentidão, como quem saboreia um gesto esquecido. Depois, olhou nos olhos do rapaz e disse: — “Meu filho, trabalha com satisfação, e teu fardo se tornará mais leve. Nem tudo o que brilha é bênção.” Logo depois, o chão tremeu. O céu pareceu escurecer por instantes. A terra ao redor do buraco desmoronou repentinamente, engolindo todos os que ali estavam — exceto o jovem que oferecera água ao velho. Quando os moradores correram ao local, encontraram-no em choque, olhos arregalados, contando o que havia presenciado. Muitos passaram a acreditar que aquele velho não era um homem qualquer — mas o próprio Jesus Cristo, que viera testar os corações. Em honra a esse milagre e ao único gesto de compaixão entre tantos atos de egoísmo, ergueu-se ali, pouco depois, a Igreja do Rosário. E a alavanca de ouro? Nunca mais foi vista. Dizem que foi levada para o fundo da terra, onde a ganância humana não pode mais alcançá-la.
O Pé de Garrafa – O Gigante Solitário da Floresta
Nas profundezas das florestas mais densas e nas encostas das montanhas mais altas do Mato Grosso, há quem jure ouvir gritos longínquos ecoando na madrugada. Gritos tão fortes que, dizem, podem arrebentar os tímpanos de quem ousa escutá-los de perto. Esses gritos não pertencem a nenhum animal comum… são os clamores do temido Pé de Garrafa. Trata-se de uma criatura mística, de presença marcante e aparência singular. É descrito como um ser gigantesco, com mais de três metros de altura, completamente coberto por um pêlo negro espesso, exceto na região do umbigo, onde se encontra uma mancha branca — o seu ponto mais vulnerável. O nome vem do seu único pé, grande e arredondado, com a forma do fundo de uma garrafa, o que lhe dá um caminhar pesado e inconfundível. Para além disso, carrega no rosto apenas um olho — profundo, triste, inquieto — e um único chifre, curvo como galho de árvore seca. Mas o que muitos não sabem é que por trás dessa figura assustadora esconde-se uma alma solitária e antiga. Conta-se que o Pé de Garrafa não nasceu monstro. Em tempos remotos, foi um homem comum, um guardião das matas que desafiou as forças da natureza em busca de poder. Castigado pela própria floresta que jurara proteger, foi transformado num ser marginalizado, preso ao seu território e condenado a vagar eternamente. Hoje, quando encontra alguém nos caminhos escuros da mata, o Pé de Garrafa grita — não para atacar, mas para perguntar o caminho de volta à humanidade, ou talvez para ter uma companhia por instantes. Mas há um aviso antigo: quem ouve os gritos não deve responder, pois ele pode seguir a pessoa por longas distâncias, assombrando os seus passos. A única forma de escapar do seu encalço, dizem os mais antigos, é atingir-lhe o umbigo branco — o ponto fraco que guarda o último vestígio do homem que um dia foi. O Pé de Garrafa é, portanto, mais do que um monstro. É um aviso das matas, um reflexo das escolhas humanas e da solidão que nasce quando nos afastamos da nossa essência.
A Visão – A Dama Branca do Carnaval
Em 1926, pelas calçadas e praças de Cuiabá, não se falava de outra coisa senão da jovem bela e encantadora que iluminava a cidade com sua presença. Conhecida pelo sorriso fácil e pelo espírito alegre, ela era muito estimada pela sociedade cuiabana, especialmente durante os animados bailes de Carnaval. Naquele ano, entregou-se por completo à folia: dançou, cantou e sorriu durante os três dias de festa dedicados ao reinado de Momo. No entanto, mal findaram os festejos, a jovem adoeceu subitamente. Em poucos dias, sua luz apagou-se, deixando a cidade mergulhada em tristeza e espanto. O tempo passou e, como é costume, a memória da moça começou a esvair-se das conversas do quotidiano. Até que, numa certa noite, no bairro do Porto, começaram os primeiros relatos de uma aparição. Alguns foliões diziam ter avistado uma mulher vestida de branco, com feições delicadas e conhecidas. Aproximava-se silenciosa, quase etérea. Quem a via jurava: era a mesma jovem que falecera no Carnaval. O vulto, porém, desaparecia tão misteriosamente quanto surgia. Com o tempo, a lenda ganhou novos contornos. Contava-se que, durante os bailes carnavalescos, a moça voltava em espírito, deslumbrante, dançando entre os vivos. Escolhia um parceiro e, ao fim da noite, levava-o consigo até às imediações do Cemitério da Piedade. Ali, diante do velho portão de ferro, sorria pela última vez, despedia-se… e sumia na penumbra da madrugada, entre as sombras das sepulturas. Desde então, muitos evitam aceitar danças de desconhecidas nos bailes do Porto, especialmente aquelas vestidas de branco. Pois nunca se sabe se se trata de uma foliã comum… ou da Visão que, todos os anos, regressa para um último Carnaval.
Tibarané – O Canto que Antecede a Morte
Entre as veredas e matas densas próximas ao Rio Cuiabá, corre uma lenda temida entre os habitantes do campo: a do Tibarané, um pequeno passarinho encantado, cuja presença anuncia desgraças — e por vezes, a própria morte. Conta-se que, há muito tempo, vivia uma anciã indígena, conhecida por vaguear pelas florestas, perturbando a vida dos que ali moravam. Segundo a tradição, ao amanhecer, ela saía pelos caminhos de terra batida e batia de porta em porta, pedindo um pouco de fumo. Se o pedido era atendido, a velha apenas agradecia com um sorriso silencioso e desaparecia entre as árvores. Mas se alguém recusava ou dizia não ter fumo, o semblante da anciã tornava-se sombrio. Ela virava costas e sumia na mata — mas, à noite, regressava transformada. Na escuridão, um pequeno pássaro pousava sobre a cumeeira da casa de quem a negara. O seu canto era agudo, quase sobrenatural. E segundo os antigos, quando o Tibarané canta, a morte não tarda a bater à porta daquela casa. Nas roças antigas próximas ao Rio Cuiabá, os mais velhos ainda murmuram com respeito e receio: “Quando ouvires o piado do Tibarané, reza… e reza depressa.” Outra versão da lenda fala de um homem — andrajoso, de olhos fundos e fala pausada — que, ao anoitecer, assume a forma da ave encantada. Quem necessitar de ajuda, um favor ou algum bem, deve esperar pelo canto do Tibarané e, com fé, fazer-lhe um pedido, prometendo em troca comida, bebida ou fumo. Se o pedido for aceito, diz-se que, dias depois, um estranho baterá à porta da casa. É o Tibarané, agora em forma humana, vindo cobrar o prometido. Recusar o pagamento é arriscar-se a sofrer as consequências do encantamento. Entre mito e aviso, o Tibarané continua a habitar o imaginário popular — como pássaro, espírito ou sombra, que guarda entre as penas o poder de abençoar ou amaldiçoar.
O muro que leva à escuridão
Nos tempos em que o bairro Quilombo ainda preservava suas raízes e características originais, existia, num canto mais afastado, um velho muro com uma parte arrombada. O matagal crescia desordenado, escondendo os restos das antigas taipas socadas, que guardavam histórias esquecidas pelo tempo. Durante o período das chuvas, as águas corriam fartas naquela zona. Mas nas épocas de seca, lavadeiras e engomadeiras precisavam caminhar longas distâncias até o Ribeirão, passando por locais como o tanque do Baú ou os logradouros do Pito Aceso. O regresso, sempre carregadas com trouxas de roupa, obrigava-as a atravessar o tal muro arrombado, já no cair da noite. Uma dessas mulheres era Siá Joaninha, lavadeira de mãos calejadas e fé inabalável. Sempre ouvia da sua patroa, Sinhá Dona:— “Qualquer dia, essa tua mania de trazer roupa à noitinha vai-te pregar um susto dos grandes!”Mas Joaninha ria, firme:— “Com o rosário de Nossa Senhora e o meu cachorro Ventania, não temo alma viva nem morta!” Costumava voltar para casa por volta das oito da noite — uma hora tardia, nos tempos antigos. Foi numa dessas noites que, ao cruzar o caminho poeirento e silencioso, o vento lhe trouxe sons estranhos: cochichos abafados, ladainhas arrastadas, como preces malditas ditas por vozes sem rosto. Ela apressou o passo, apertando o rosário entre os dedos, mas os murmúrios apenas aumentavam. Era como se caminhasse de encontro ao mistério. Numa curva do trilho, deu-se o inesperado: um cortejo fúnebre. Todos vestidos de negro, cabeças baixas, passos sincronizados numa marcha fúnebre, em redor de um caixão igualmente negro. O silêncio era cortado apenas pela toada sinistra das vozes. O grupo caminhava lentamente… em direção ao muro arrombado, por onde entraram, um a um, desaparecendo na escuridão do mato. As pernas de Siá Joaninha fraquejaram. Agarrou-se ao rosário e, com o coração aos pulos, correu como nunca, com Ventania a ladrar assustado ao seu lado. Desde então, diz-se que o muro arrombado não é apenas um atalho, mas um portal. Um lugar onde, em noites caladas, o mundo dos vivos e o dos mortos se cruzam — e nem todos têm a sorte de voltar para contar.
Troá Troá – O sussurro da meia-noite
Entre os mistérios das matas de Mato Grosso, ecoa uma lenda envolta em medo e curiosidade: a do Troá Troá. Segundo os antigos, há mais de uma forma de descrever essa criatura enigmática. No livro Retratos dos Seres da Noite, de Marlene Kirchesch, o Troá é apresentado como um velho tronco de árvore, coberto por uma textura aveludada e sem galhos, que ganha vida nas madrugadas, arrastando-se pela floresta e produzindo um som arrepiante: “troá, troá, troá”. Diz-se que, quando um casal de viúvos se casa, após a morte, a mulher pode transformar-se nesse ser espectral. A alma, inquieta por algum motivo, permanece ligada à Terra, vagando pela mata na forma do Troá. Muitos moradores da região afirmam já ter ouvido os lamentos desse ser nas profundezas da noite, principalmente às sextas-feiras, quando sua presença parece mais intensa. O silêncio que antecede e sucede os seus clamores é descrito como algo que gela a espinha e paralisa até os mais corajosos. Mas há também outra versão da lenda — uma mais protetora que ameaçadora. Nessa, o Troá é um guardião da floresta. Aparece como um homem baixo, coberto de pelos, sempre com um grande galho nas mãos, usado como arma. Ele surge das sombras para proteger os animais e a mata contra caçadores e malfeitores. Para os que respeitam a natureza, o Troá é invisível. Mas para os que a ameaçam, ele é uma força implacável. Independentemente da versão, o Troá Troá continua a povoar o imaginário popular, misturando o sobrenatural com os sons noturnos da floresta, onde nunca se sabe o que espreita entre as árvores.
A lenda do Minhocão do Pari
cÀs margens do Rio Cuiabá, na região do Porto da capital, existe um local conhecido como Pari. As águas desse trecho do rio são fortes e turbulentas, formando poços profundos que criam redemoinhos traiçoeiros. Conta a lenda que, em um desses poços, habita o temido Minhocão do Pari — uma criatura mítica, semelhante a uma serpente gigantesca, que, em tempos antigos, atraía pescadores, banhistas e casais enamorados para as profundezas do rio, onde acabavam por se afogar. Diversos canoeiros que navegam por ali afirmam já ter avistado a fera. De acordo com os relatos, trata-se de um animal com mais de 20 metros de comprimento e cerca de dois metros de diâmetro, uma verdadeira monstruosidade das águas. Uma das histórias mais contadas entre os pescadores fala de uma bela jovem que se apaixonou por um humilde pescador. Contudo, seu pai, um homem severo e orgulhoso, obrigou-a a casar-se com um rico compadre. Na noite do casamento, vestida de noiva, a moça foi até o rio despedir-se do verdadeiro amor. Incapazes de aceitar a separação, os dois decidiram fugir juntos pelas águas do Rio Cuiabá. Envergonhado com o escândalo e determinado a proteger a sua honra perante os familiares e amigos, o pai espalhou a versão de que a filha havia sido engolida pelo Minhocão do Pari. Assim, a lenda perpetuou-se, misturando tragédia, amor proibido e o mistério das águas escuras do rio.
O primeiro escândalo amoroso de Cuiabá: paixão, poder e exílio

Em meio ao cenário bucólico e intrigante da Cuiabá colonial, em 1753, desenrolou-se um drama de paixão e poder que marcaria os primórdios da história da então Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá. Os protagonistas deste romance foram duas figuras ilustres da época: o influente ouvidor João Vaz Morilhas, homem culto e elegante, e o governador da recém-criada Capitania de Mato Grosso, dom Antônio Rolim de Moura Tavares. No centro deste triângulo explosivo, estava a misteriosa e encantadora Benta Cardoso, uma mulher cuja beleza e presença cativaram os dois homens mais poderosos da região. A trama teve início nas noites silenciosas da pequena vila. Vaz Morilhas, profundamente apaixonado por Benta, a recebia secretamente em um casarão que hoje abriga os Correios, situado na então Rua Bela do Juiz, atual 13 de Junho. A jovem, detida no quartel vizinho, escapava sorrateiramente todas as noites, atravessando uma porta entreaberta que dava acesso direto ao apaixonado juiz. Sob as estrelas, longe das vistas curiosas, os dois viviam seu romance proibido, desafiando convenções e o próprio destino. No entanto, o idílio foi interrompido pela chegada de dom Antônio Rolim de Moura Tavares, o primeiro governador da capitania, enviado por El-Rei de Portugal para impor a ordem e consolidar o domínio português na região. Dono de um temperamento enérgico e ambicioso, Rolim de Moura rapidamente se estabeleceu como a autoridade suprema da vila, ofuscando o poder até então exercido pelo ouvidor. Não tardou para que os olhos do governador recaíssem sobre Benta Cardoso, e ele, tão enfeitiçado quanto o juiz, decidiu disputar o coração da jovem. O que se seguiu foi uma verdadeira batalha de egos e influências. Rolim de Moura, valendo-se de sua autoridade como representante direto da coroa, começou a perseguir e ameaçar Vaz Morilhas. A rivalidade entre os dois escalou até um ponto insustentável, e o governador, determinado a eliminar seu concorrente, ordenou a prisão do juiz. Sob escolta armada, João Vaz Morilhas foi forçado ao exílio, sendo enviado para Belém, no Pará, deixando para trás não apenas a mulher que amava, mas também sua posição e prestígio na Vila Real de Cuiabá. Com o afastamento de Vaz Morilhas, o romance chegou ao fim, mas suas repercussões ecoaram por décadas. O nome da Rua Bela do Juiz, como passou a ser conhecida pela população, eternizou o episódio nas memórias cuiabanas, transformando o local em um marco da paixão e da intriga política. Benta Cardoso, por sua vez, permaneceu envolta em mistério, um enigma de seu destino que apenas aumentou seu fascínio na imaginação popular. Já dom Antônio Rolim de Moura Tavares continuou a governar a capitania, consolidando sua influência e deixando um legado administrativo que, paradoxalmente, carregava as marcas de um amor que nunca chegou a ser consumado plenamente.